quinta-feira, 12 de maio de 2011

MPF contra a MP 521/2010: alertando o Congresso para evitar a lambança de dinheiro público na Copa

Tão logo o Brasil foi escolhido para sediar a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, o Ministério Público Federal acendeu o alerta amarelo e começou a se organizar para a fiscalização do uso indevido de dinheiro público nesses eventos.

Foi criado um Grupo de Trabalho, o GT-Copa, no âmbito da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, que é o órgão nacional encarregado dos assuntos atinentes ao patrimônio público e à lisura da Administração Pública. Já falei do trabalho do grupo aqui no blog - "Ministério Público na Copa 2014: agindo para você não tomar bola nas costas" - http://janiceascari.blogspot.com/2011/04/ministerio-publico-na-copa-2014-agindo.html

O GT-Copa preparou uma excelente Nota Técnica, que será hoje encaminhada aos senhores parlamentares, apontando os absurdos contidos no Projeto de Lei de Conversão da MP 521/2010, que estabelece um "regime diferenciado" para as contratações a ser feitas para a Copa das Confederações  (FIFA 2013) e para a Copa do Mundo de 2014. A "diferença", resumidamente, é dar plenos poderes a que tudo seja feito sem muito regramento, favorecendo os apadrinhamentos e a corrupção.


O projeto confere ao Poder Executivo o poder de definir, com base em critérios eminentemente subjetivos, qual o regime de licitação a adotar em cada caso e ainda cria uma nova modalidade ("contrato de eficiência")  que, pela ausência de regras, será efetivada sabe lá Deus como, contrariando os princípios constitucionais que regem a Administração Pública.

Leia a Nota Técnica e acione o seu Deputado Federal para que vote contrariamente ao Projeto de Lei de Conversão da MP 521/2010.

Vai ser aquela lambança de verbas públicas, tudo em nome da Copa. Você já sabe onde será espetada essa conta, não?


                       NOTA AO PROJETO DE LEI DE CONVERSÃO DA MP 521/2010
                               (Regime Diferenciado de Contratações Públicas)




O Grupo de Trabalho Copa do Mundo FIFA 2014 da Quinta Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal vem manifestar-se DESFAVORAVELMENTE à aprovação dos dispositivos abaixo elencados constantes do Projeto de Lei de Conversão da MP 521/2010 em tramitação nesta Nobre Casa Legislativa, o qual versa sobre lei institutiva do denominado Regime Diferenciado de Contratações Públicas a ser aplicado às licitações e contratos necessários à realização da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação – FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014, pelas razões a seguir descritas.

Primeiro dispositivo:

“Artigo 3º Fica instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, aplicável às licitações e contratos necessários à realização:
I – dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, constantes da Carteira de Projetos Olímpicos a ser definida pela Autoridade Pública Olímpica – APO; e
II – da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação – FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014, definidos pelo Grupo Executivo – GECOPA 2014 do Comitê Gestor instituído para definir, aprovar e supervisionar as ações previstas no Plano Estratégico das Ações do Governo Brasileiro para a realização da Copa do Mundo FIFA 2014 – CGCOPA2014 e, no caso das obras, as constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
(...)”

Razões:

Houve afronta ao artigo 22, inciso XXVII e 37, inciso XXI, ambos da Constituição. A Constituição estabelece o dever da legislação federal normatizar, a título de norma geral, as licitações e contratações; estabelecer ou fixar, portanto, o regime das licitações. Isto significa ter parâmetros suficientes para que o Administrador, pretendendo satisfazer determinada necessidade administrativa – concernente a determinado objeto licitável - tenha de antemão a previsibilidade das regras a serem cumpridas na execução do certame licitatório.

A nosso ver, a aplicação do regime RDC às "licitações e contratos" "necessários à realização da Copa das Confederações da Federação Internacional de Futebol Associação - FIFA 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014, definidos pelo Grupo Executivo - GECOPA 2014" é uma cláusula intoleravelmente aberta, e que, a rigor, indica que está sendo conferido ao Poder Executivo o poder de definir ou escolher, com base em critério de elevado subjetivismo, o regime jurídico da licitação pública. Este poder de regência normativa é exclusivamente do legislador, e não pode ser transferido ou delegado ao Poder Executivo, da forma que está no projeto.

Não há nenhuma baliza legal sobre a qualificação nos casos concretos do que seja uma licitação ou contratação "necessária" aos eventos previstos na norma, outorgando-se desproporcional poder de decisão ao “Grupo Executivo – GECOPA 2014”. Sendo indiscutível a relevância dos eventos citados na norma, a mera referência a necessidades vinculadas aos mesmos não oferece nenhuma limitação ao exercício da competência administrativa, possibilitando o seu uso com arbitrariedade.

Interessante perceber que a mesma indeterminação foi reduzida no plano da lei no caso das "obras", porque a lei só autoriza para as "constantes da matriz de responsabilidades celebrada entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios."

Na forma da redação atual, o artigo 3º, inciso II, viola a Constituição Federal, em especial os artigos 22, inciso XXVII, e artigo 37, inciso XXI, porque de forma expressa outorgou o poder de definir o próprio regime de determinada licitação ou contrato ao próprio destinatário das limitações que a lei deve consignar.

Há violação de princípios constitucionais da Administração Pública. Atenta contra a isonomia, porque admite em tese aplicação de regimes jurídicos díspares para contratações similares, a depender da exclusiva e subjetiva decisão da Administração Pública em determinado momento. Também gera violação da moralidade administrativa, porque a lei está chancelando – e não limitando – a atividade arbitrária do Administrador.

Segundo e terceiro dispositivos:


Art. 10. Na execução indireta de obras e serviços de engenharia são admitidos os seguintes regimes:
(...)

V – contratação integrada.

§ 1º Nas licitações e contratações de obras e serviços de engenharia serão adotados, preferencialmente, os regimes de empreitada por preço global, empreitada integral e contratação integrada.

§ 2º No caso de inviabilidade da aplicação do disposto no § 1º deste artigo, poderá ser adotado outro regime previsto no caput deste artigo, hipótese em que serão inseridos nos autos do procedimento os motivos que justificaram a exceção.
(...)

§ 5º Nas licitações para a contratação de obras e serviços de engenharia, com exceção daquelas onde for adotado o regime previsto no inciso V do caput, deverá haver projeto básico aprovado pela autoridade competente, disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório.

Art. 11 Nas licitações de obras e serviços de engenharia serão no âmbito do RDC poderá ser utilizada a contratação integrada, desde que técnica e economicamente justificado.

§1º A contratação integrada compreende a elaboração e o desenvolvimento dos projetos básico e executivo, a execução de obras e serviços de engenharia, a montagem, a realização de testes, a pré-operação e todas as demais operações necessárias e suficientes para a entrega final do objeto, respeitadas as condições de solidez, segurança, durabilidade, qualidade, prazo de entrega e preço especificados no instrumento convocatório, respeitado o disposto no caput do art. 8º.

§2º No caso de contratação integrada:

I – o edital deverá conter anteprojeto de engenharia que contemple os documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço, incluindo a demonstração e a justificativa do programa de necessidades, a visão global dos investimentos e as definições quanto ao nível de serviço desejado, aos padrões de segurança, à estética do projeto arquitetônico, à adequação ao interesse público, à economia na utilização, à facilidade na execução, á durabilidade e aos impactos ambientais;

II – o valor estimado da contratação será calculado com base nos valores praticados pelo mercado, nos valores pagos pela Administração Pública em serviços e obras similares ou na avaliação do custo global da obra, aferida mediante orçamento sintético ou metodologia expedita ou paramétrica; e

III – será adotado o critério de julgamento técnica e preço;

§3º Caso seja permitida no anteprojeto de engenharia a apresentação de projetos com metodologias diferenciadas de execução, o instrumento convocatório estabelecerá critérios objetivos para avaliação e julgamento das propostas.

§4º Nas hipóteses em que for adotada a contratação integrada, fica vedada a celebração de termos aditivos aos contratos firmados, exceto nos seguintes casos;

I – para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro decorrente de caso fortuito ou força maior; e

II – por necessidade de alteração do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica aos objetivos da contratação, a pedido da Administração Pública, desde que não decorrente de erros ou omissões por parte do contratado, observados os limites previstos no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.”

Os dispositivos conferem à Administração o dever de adoção preferencial do regime denominado contratação integrada, no caso de obras e serviços de engenharia. Com isto, obras e serviços de engenharia ficam livres da exigência de apresentação de projeto básico e de projeto executivo, nos termos da legislação geral em vigor (artigo 7º da Lei nº 8.666/1993).

Tendo em vista a definição legal do regime (artigo 11 e §1º), no qual se observa a amplitude do objeto da licitação no referido regime, havendo previsão apenas de que o Edital deverá conter um “anteprojeto de engenharia” (art. 11, §2º, inciso I), resta já confessado que o Poder Executivo irá adotar o RDC para obras e serviços de engenharia através do referido regime.

Ocorre que o conteúdo do denominado “anteprojeto de engenharia” é extremamente vago, genérico, e implicará a não a definição adequada do objeto da licitação e do futuro contrato, violando expressamente o artigo 37, inciso XXI, que impõe o dever de licitar para contratações de obras e serviços de engenharia e pressupõe logicamente a sua exata configuração. Não há licitação sem prévio e determinado objeto, porque sem isto não há condições de disputa.

Admitindo-se o “anteprojeto de engenharia”, isto implicará violação do princípio da competitividade, isonomia e da impessoalidade, porque impedirá o julgamento objetivo da licitação. Também poderá ensejar graves desvios de verbas públicas em razão da deficiência e da insuficiência do citado “anteprojeto de engenharia”.

A inadequação do “anteprojeto de engenharia” para definir o objeto da licitação é confirmada pela previsão genérica do modo de fixação do valor estimado da contratação (art. 11, §2º, inciso II).

A inadequação do “anteprojeto de engenharia” para definir o objeto da licitação e do contrato também é confirmada na previsão do artigo 11, §4º, inciso II, no qual já se estabelece a possibilidade de “alteração do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica aos objetivos da contratação”. Esta possibilidade já é contemplada na legislação atual, mas será indiscutivelmente potencializada com a indefinição do objeto licitado no regime da contratação integrada.

A licitação é um procedimento destinado a seleção da proposta mais vantajosa, nos termos do artigo 37, inciso XXI, CF. No regime da contratação integrada, leva-se ao extremo a idéia de flexibilização da identificação do objeto da licitação, levando o regime para o campo da inconstitucionalidade, porque não se tem no referido regime objeto definido e apto a ser licitado, a servir de parâmetros para propostas diversas que possam ser objetivamente comparáveis. Ou seja, não se tem a definição do objeto contratável, e, portanto, há nítida fuga ao dispositivo constitucional citado.

A lei procura amenizar a inconstitucionalidade, fazendo referência à adoção obrigatória do critério de julgamento técnica e preço. Ora, procurou desviar o foco da inconstitucionalidade, porque não há como promover a elaboração adequada de exigências de formação de propostas técnicas sem o prévio e adequada definição da obra ou serviço de engenharia.

De outro lado, o artigo 11, §1º, reporta-se ao respeito às condições de preço especificado no instrumento convocatório. Isto agrava a inconstitucionalidade do regime da contratação integrada, porque permite situação de “anteprojeto de engenharia” com preço global especificado no Edital, com critério de “maior desconto” (art. 20, inciso I).

É uma violação manifesta dos princípios da isonomia, da moralidade e da impessoalidade, todos inspirados na indisponibilidade dos interesses públicos. Em rigor, a lei estará a autorizar a quase plena disponibilidade do interesse público pelo Administrador. A obra é pública, e não do Administrador, sendo certo que a execução de obra pública é atividade constitucionalmente regida pelos princípios do Direito Administrativo (art. 37).

Certamente, o regime de contratação integrada implicará maior rapidez na execução dos serviços e obras de engenharia. Todavia, esta pretendida celeridade não pode ser obtida com eliminação do núcleo essencial do princípio da licitação, que exige especificação adequada do objeto, e não apenas “documentos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço”, como pretende inconstitucionalmente o projeto. A Constituição não pode ser alterada por norma jurídica de estatura hierárquica inferior.

Ademais, sabe-se que a utilização indevida do critério de técnica e preço para obras e serviços sem cunho intelectual e irregularidades na condução de projetos pelos contratados já deram causa a diversos desvios em licitações e prejuízos ao erário. A esse respeito, cita-se as ações de improbidade administrativa ajuizadas pelo Ministério Público Federal em relação às obras dos Aeroportos de Vitória, Macapá, e Rio de Janeiro (Santos
Dumont) 1, as quais foram, inclusive, objeto da CPMI do Apagão Aéreo (Processos 2008.34.00.039431-1, 2009.34.00.006669-6 e 2008.34.00.035166-9, respectivamente, todos em curso na Seção Judiciária Federal do Distrito Federal.).

Quarto e quinto dispositivos:

Art. 20 Poderão ser utilizados os seguintes critérios de julgamento: (...)

V – maior retorno econômico.

Art. 25. No julgamento pelo maior retorno econômico, utilizado exclusivamente para a celebração de contratos de eficiência, as propostas serão consideradas de forma a selecionar a que proporcionará a maior economia para a Administração Pública decorrente da execução do contrato.

§1º O contrato de eficiência terá por objeto a prestação de serviços, que pode incluir a realização de obras e o fornecimento de bens, com o objetivo de proporcionar economia ao contratante, na forma de redução de despesas correntes, sendo o contratado remunerado com base em percentual da economia gerada.

§2º Na hipótese prevista no caput deste artigo, os licitantes apresentarão propostas de trabalho e de preço, conforme dispuser o regulamento.

§3º Nos casos em que não for gerada a economia prevista no contrato de eficiência:

I – a diferença entre a economia contratada e a efetivamente obtida será descontada da remuneração da contratada;

II – se a diferença entre a economia contratada e a efetivamente obtida for superior à remuneração da contratada, será aplicada multa por inexecução contratual no valor da diferença; e

III – a contratada sujeitar-se-á, ainda, a outras sanções cabíveis caso a diferença entre a economia contratada e a efetivamente obtida seja superior ao limite máximo estabelecido no contrato.”

Razões:

A consagração do critério “maior retorno econômico”, conjugado com a criação de novo tipo contratual – o denominado “contrato de eficiência” - tal como adotado na redação atual do Projeto, conflita com o princípio constitucional da impessoalidade (art. 37, caput) e a objetividade nas licitações públicas.

Não há delimitação legal sobre o campo de abrangência do denominado “contrato de eficiência”. Tal como configurado no projeto (art. 25, §1º), qualquer espécie de serviço ou atividade da Administração Pública poderá ser objeto do aludido contrato. Com a sua aprovação, a nova figura de contrato administrativo abrangerá, na literalidade da proposta, qualquer contratação de prestação de serviços, na amplíssima dicção legal.

É manifestamente subjetivo apontar o julgamento de uma licitação, com base no citado critério “maior retorno econômico”.

Não adiantar estabelecer que o julgamento será efetivado pelo emprego de parâmetros objetivos definidos no Edital (art. 19, §1º), quando logicamente é impossível traduzir em dados objetivos o que é essencialmente subjetivo.

A lei criou uma nova categoria de contrato administrativo, bem similar à denominada concessão administrativa da Lei da PPPs (Lei nº 11.079/2004). Basta observar o objeto do contrato de eficiência (art. 25, §1º) e ver a semelhança entre os modelos normativos. Mas o contrato de eficiência é diferente no parâmetro de remuneração, que estaria embasada na redução de despesas correntes. O projeto não contém nenhuma limitação ao novo modelo contratual, em termos de valor estimado, prazo de vigência, formas de alteração unilateral e de rescisão unilateral etc.

A nova figura não traz suficiente regramento apto a fornecer segurança jurídica na sua aplicação pela Administração Pública. É bom frisar que, nos termos do art. 3º, §2º, a adoção do RDC resultará no afastamento das normas contidas na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, exceto nos casos expressamente previstos. Para o “contrato de eficiência”, há profunda obscuridade no regime estabelecido, dada a singela disciplina legal, em vista da elevada complexidade que sua aplicação certamente provocará.

Conclusão:

São estas as considerações que o Grupo de Trabalho Copa do Mundo FIFA 2014 da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal leva ao conhecimento do Congresso Nacional, para que sejam apreciadas no momento da análise e votação do projeto do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, na certeza de que possam subsidiar o processo legislativo na melhor deliberação na matéria, à luz da Constituição Federal.

Ressalta-se que a presente Nota destaca apenas os pontos mais significativos do Projeto de Lei de Conversão da MP 521/2010, na redação à qual o Ministério Público Federal teve acesso. Assim, a impugnação dos dispositivos acima apontados não exaure a análise deste órgão acerca de outros artigos, cuja inconstitucionalidade poderá ser questionada pelo controle concentrado.

Brasília, 10 de maio de 2011.


Athayde Ribeiro Costa
                                                 Carolina de Gusmão Furtado
Procurador da República                                                  Procuradora da República


Ana Carolina Oliveira Tannus Diniz                          Paulo Roberto Galvão de Carvalho
Procuradora da República                                                   Procurador da República
 


Nenhum comentário:

Postar um comentário