segunda-feira, 25 de junho de 2012

Caos jurídico: tribunais querem liberar 'contrabando' até 20 mil reais!!!

Transcrevo, abaixo, artigo do Prof. DOUGLAS FISCHER, Procurador Regional da República em Porto Alegre, um dos mais respeitados e lúcidos juristas contemporâneos.

Vale a pena a leitura. É o retrato triste, mas fiel, de como os nossos tribunais andam decidindo.



A DESORDEM (AINDA MAIOR) DO CAOS:

ACABOU A POSSIBILIDADE DE

PRISÃO EM FLAGRANTE DE “CONTRABANDISTAS”


Douglas Fischer 1



Contextualização. O direito penal no Brasil, infelizmente, anda com alguma desordem. Reiteradamente tenho dito, com muito pesar, que, no país atual, é um grande negócio “sonegar” (de forma ampla) tributos (e das mais variadas formas). Contudo, a desordem aumentou: algumas decisões dos tribunais – capitaneada pelo Superior Tribunal de Justiça – premiam algumas práticas criminosas. Por conta de alguns jugados recentes (abaixo referidos), não mais é possível a prisão em flagrante de “contrabandistas”. E tudo é fruto, venia concessa, da ausência de compreensão do Direito Penal (no caso, tributário), e, especialmente, com fundamento na proteção de supostos direitos dos autores de condutas criminosas.

A concentração no presente texto está quanto ao delito de descaminho, popularmente também chamado de “contrabando”, mas que deste difere por questões mais técnico-jurídicas: enquanto o descaminho se caracteriza (sobretudo) pela introdução de mercadorias no Brasil sem o pagamento dos impostos devidos (além de atingir a arrecadação, prejudica – e muito – o direito concorrencial2), o contrabando é delito específico em que há proibição de importação de determinados bens, mesmo que se queira pagar aquela tributação.

Nem entrarei na presente abordagem no entendimento dos tribunais de que, atualmente (por força da Portaria do Ministério da Fazenda nº 75, de 22 de março de 2012), seria “insignificante penalmente” (ou seja, não é crime algum) a prática de “contrabando” de até R$20.000,00 (exatamente isso, pode-se trazer aproximadamente mercadorias em que deveriam ser pagos tributos de até vinte mil reais), porque o Estado não faria a “cobrança judicial” destes valores (embora utilize alguns meios administrativos para reaver a quantia inferior àquele patamar, como ocorre com a realização de inscrição do devedor no Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público federal - Cadin).

Por isso, a “desordem (ainda maior) do caos”. Vejamos, então, a que ponto chegou a jurisdição em nosso país, com o máximo respeito a quem pensa em sentido contrário. Que fique bastante claro: a discussão é meramente dialética, malgrado sejam lançados argumentos até contundentes em determinados momentos. O ataque argumentativo é ao conteúdo das decisões, jamais aos seus prolatores.


A origem do problema. Não nego a repetição do tema, mas é fundamental insistir, sobretudo quando se está diante de erro dogmático ao tratar da delinquência econômica. Com efeito, em decorrência de um dos maiores equívocos de compreensão de como realmente se consumam os delitos tributários (a sonegação fiscal, no caso prevista no art. 1º, Lei 8.137/90), no julgamento do HC nº 81.611-SP 3, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou (e os tribunais passaram simplesmente a repetir) que seria necessário o exaurimento da esfera administrativa para a existência de crime daquela natureza (piores são os argumentos que chamam esse requisito de condição objetiva de punibilidade).

Em palavras mais objetivas, significa que o crime não existe com a ação ou a omissão do criminoso (ou seja, com o ato de fazer a sonegação – de acordo com a denominada Teoria da Atividade, prevista no art. 4º do Código Penal Brasileiro – literalmente “rasgada” pelos atos decisionistas), mas sim quando há o exaurimento de todas (e longas) discussões na seara administrativa. Importante repisar: o crime só existe com o final da discussão administrativa. Pior: se não houver a apuração pelo fisco de crédito tributário (algo absolutamente diferente do elemento objetivo do tipo da sonegação tributo) no prazo de 5 anos inviável também a responsabilização penal, que tem prazo de 12 anos, segundo as regras da legislação penal vigente.
A situação é mais ou menos como se o STF passasse a exigir necessariamente a certidão de óbito lavrada por determinado cartório para que alguém seja punido pelo crime de homicídio. Sem ela (mesmo diante do corpo do morto, com atestado do óbito), inviável seria a persecução penal. Lá, a tragédia significa sangria dos cofres públicos.
Mas há sempre como piorar a desordem: houve evolução (na verdade, “involução”) dos “precedentes”. E quando se fala de um tema sem muita coerência jurídica, as consequências normalmente são catastróficas (no caso, para o interesse coletivo). Editou-se uma Súmula Vinculante para se dizer que “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Poderia o leitor perguntar: mas e o inciso V do art. 1º da Lei n. 8.137/90 não foi incluído? A resposta é negativa. As razões? Um mistério, mas que pode ser desvelado se lidos com um pouco (não precisa muito) de cuidado alguns dos votos nos primeiros precedentes que geraram tamanho descalabro jurídico com a retromencionada súmula vinculante. Ainda tento encontrar um argumento coerente e jurídico para que não se tenha incluído na referida redação - para quem a aceita, é claro – a hipótese do inciso V do art. 1º da Lei nº 8.137/90. Quiçá, e assim nos pareceu noutra análise por conta do que decidido no HC n º 90.795-PE pelo STF, continua-se a compreender que o crime tributário está na conduta-meio (e é hialino que a hipótese do inciso V é mera infração administrativa) ou porque - ainda – confunde-se crime tributário com mero não recolhimento de tributos. O surrealismo de Salvador Dali, certamente, iria se ofender com tamanha imaginação distorcida.
Mas, em síntese, é o que se decidiu: vale o “argumento da autoridade”, dispensa-se a “autoridade do argumento”.
A “evolução” do pensamento. Não bastasse o Superior Tribunal de Justiça (STJ) dizer que o exaurimento da esfera administrativa deveria ocorrer também para aqueles crimes de sonegação de natureza formal (art. 2º, Lei 8.137/90 e art. 168-A, § 1º, Código Penal – a apropriação indébita previdenciária4), a Corte valeu-se de um “precedente” (na verdade, de uma ementa) em que não se decidiu absolutamente nada nesse sentido. O E. STJ referiu-se ao (suposto) precedente tomado no julgamento pelo STF do Agravo Regimental no Inquérito n. 2.537. Na verdade, olvidou (e assim continua, porque os precedentes citam parte do que foi acordado) que o STF julgou embargos de declaração ao caso acima e afirmou, peremptoriamente, que os delitos formais dispensariam discussões na seara administrativa. Se alguém tem alguma dúvida, atente para o que disse expressamente o Ministro Cezar Peluso: “O Ministério Público, parece-me, pretende é dissipar a preocupação de que, deste julgado, se tire a tese de que o crime, no caso de desconto, pelo empregador, de verba devida à previdência social, dependa de prévio procedimento administrativo para caracterizar-se como tal. No debate, entendi não ser o caso, porque, quando o empregador, ele mesmo, desconta, sabe o valor que descontou e tem que repassar. Portanto, não há necessidade nenhuma de instaurar-se prévio procedimento administrativo para saber o que ele devia ter recolhido. É ele mesmo que toma a iniciativa, logo sabe o valor que desconta e deveria recolher. E o Ministério Público está preocupado que, deste julgamento, se extraia a tese de que, ainda nesse caso, quando o empregador desconte e não recolha, seria necessário procedimento administrativo prévio para saber qual é o valor para efeito de caracterização do tributo. […] É só para fazer constar esse pronunciamento, deixar claro. Eu também rejeito os embargos. O Tribunal deixa claro que não concorda com a tese de que é necessário breve procedimento administrativo para caracterizar o tributo.”

Mas o nó górdio não está aí. O cerne de nossa discussão aqui é muito mais grave.

Alguns juristas começaram a defender que também no delito de descaminho (o popular “contrabando”, insiste-se) seria necessário o exaurimento da esfera administrativa, com a “constituição do crédito tributário”. As repetições das teses (algumas “à moda Goebbels”) foram se infiltrando nos tribunais, notadamente no STJ. A insistência (sem discussão dogmática alguma de natureza minimamente profunda sobre o crime em si) gerou “precedentes” (quer dizer: ementas, hoje muitas vezes mais valiosas que os próprios argumentos em si de uma discussão jurídica). Confiramos alguns (não para as conclusões, mas para as teses explicitadas) para espancarmos quaisquer dúvidas sobre o que aqui estamos falando:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. CRIME MATERIAL. NATUREZA TRIBUTÁRIA. NECESSIDADE DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO PROVIDO.

1. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o raciocínio adotado pelo Supremo Tribunal Federal relativamente aos crimes previstos no art. 1º da Lei n.º 8.137/90, consagrando a necessidade de prévia constituição do crédito tributário para a instauração da ação penal, deve ser aplicado, também, para a tipificação do crime de descaminho. Precedentes.

2. Embora o crime de descaminho encontre-se, topograficamente, na parte destinada pelo legislador penal aos crimes praticados contra a Administração Pública, predomina o entendimento no sentido de que o bem jurídico imediato que a norma inserta no art. 334 do Código Penal procura proteger é o erário público, diretamente atingido pela evasão de renda resultante de operações clandestinas ou fraudulentas.
3. O descaminho caracteriza-se como crime material, tendo em vista que o próprio dispositivo penal exige a ilusão, no todo ou em parte, do pagamento do imposto devido. Assim, não ocorrendo a supressão no todo ou em parte do tributo devido pela entrada ou saída da mercadoria pelas fronteiras nacionais, fica descaracterizado o delito.
4. Na espécie, confirmou-se a ausência de constituição definitiva do crédito tributário, uma vez que ainda não foram apreciados os recursos administrativos apresentados pela defesa dos recorrentes. Dessa forma, não é possível a instauração de inquérito policial ou a tramitação de ação penal enquanto não realizada a mencionada condição objetiva de punibilidade.

5. Recurso ordinário que se dá provimento a fim de extinguir a Ação Penal n.º 5001641-71.2010.404.7005, da Segunda Vara Federal da Subseção Judiciária de Cascavel, Seção Judiciária do Paraná. (RHC nº 31.368-PR, STJ, 5ª Turma, unânime, julgado em 8.5.2012, publicado em no DJ em 14.6.2012)



HABEAS CORPUS. DESCAMINHO (ARTIGO 334 DO CÓDIGO PENAL). NECESSIDADE DE EXAURIMENTO DA ESFERA ADMINISTRATIVA PARA O INÍCIO DA PERSECUÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO COMPROBATÓRIA ACERCA DA INSTAURAÇÃO E CONCLUSÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL ANTES DO OFERECIMENTO DE DENÚNCIA CONTRA O PACIENTE E DEMAIS CORRÉUS. NECESSIDADE DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. ORDEM DENEGADA.

1. Tal como nos crimes contra a ordem tributária, o início da persecução penal no delito de descaminho pressupõe o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva do crédito tributário. Doutrina. Precedentes.
2. Não há na documentação que instrui o mandamus, qualquer notícia acerca da existência ou mesmo da conclusão de procedimento administrativo para apurar a suposta ilusão do pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação por parte do paciente, circunstância que impede o trancamento do feito por falta de condição objetiva de procedibilidade. [...]
4. Ordem denegada. (Habeas Corpus nº 201.164 – PR, STJ, 5ª Turma, unânime, julgado em 8.11.2011, publicado no DJ em 1º.12.2011)



Descaminho (caso). Habeas corpus (cabimento). Matéria de prova (distinção). Esfera administrativa (Lei nº 9.430/96). Processo administrativo-fiscal (pendência). Ação penal (extinção).

1. Determina a norma (constitucional e infraconstitucional) que se conceda habeas corpus sempre que alguém esteja sofrendo ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação; trata-se de dar proteção à liberdade de ir, ficar e vir, liberdade induvidosamente possível em todo o seu alcance. Assim, não procedem censuras a que nele se faça exame de provas. Precedentes do STJ.

2. A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no art. 83 da Lei nº 9.430/96, há de se entender que a condição ali existente é condição objetiva de punibilidade, e tal entendimento também se aplica ao crime de descaminho (Cód. Penal, art. 334).

3. Em hipótese que tal, o descaminho se identifica com o crime contra a ordem tributária. Precedentes do STJ: HCs 48.805, de 2007, e 109.205, de 2008.

4. Na pendência de processo administrativo no qual se discute a exigibilidade do débito fiscal, não há falar em procedimento penal.

5. Recurso ordinário provido para se extinguir, relativamente ao crime de descaminho, a ação penal. (Recurso em Habeas Corpus n. 25.228/RS, STJ, 6ª Turma, unânime, julgado em 27.10.2009, publicado no DJ em 8.2.2010)



PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. CRIMES DE FALSO, DESCAMINHO E QUADRILHA. 1. INÉPCIA FORMAL. FALTA DE INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. OCORRÊNCIA. EXTENSÃO AOS CORRÉUS. 2. DESCAMINHO. PENDÊNCIA DE RECURSO ADMINISTRATIVO. UBI EADEM RATIO, UBI IDEM IUS. TRANCAMENTO. NECESSIDADE.

1. Cumpre ao acusador individualizar o comportamento típico, sob pena de enveredar pelos sombrios caminhos da responsabilidade penal objetiva, fazendo-se tábula rasa da garantia constitucional da ampla defesa.

2. Não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta daquela dispensada aos crimes tributários em geral. Com a anulação do processo penal ab initio, verifica-se, desta forma, que o pagamento do tributo se insere anteriormente ao recebimento de eventual nova incoativa. Assim, é de se determinar o trancamento da ação penal no tocante ao descaminho. [...](Habeas Corpus nº 67.415-ES, STJ, 6ª Turma, unânime, julgado em 15.09.2009, publicado no DJ em 28.09.2009)

Diz-se que haveria similitude dos delitos quando, é cediço, e com todas as venias, tecnicamente não há nenhuma similitude. Aliás, temos que concordar: há! Todos são delitos contra (total ou parcialmente) o interesse arrecadatório do Estado. E só!

Daí decorre um problema juridicamente insuperável: o STJ disse que a existência do crime “pressupõe o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva do crédito tributário”. Um fato indubitável: salvo situações bem definidas e excepcionais (mercadoria não localizada, consumida ou revendida), não há constituição de crédito tributário em delitos de descaminho. Aliás, o art.1º , §4o, do Decreto-lei n. 37/66 dispõe que, em regra, o Imposto de Importação não incide sobre mercadoria estrangeira que tenha sido objeto de pena de perdimento, destino quase certo de praticamente todos os bens apreendidos nas áreas de fronteira. Quid Juris?
As consequências desses inadvertidos precedentes não poderiam ser mais nefastas para o interesse coletivo e também para os agentes estatais responsáveis pela repressão desse tipo de criminalidade (quem conhece como ocorrem e em que intensidade estes tipos de crimes especialmente nas regiões de fronteira talvez começaria a repensar as consequências de suas decisões).
Uma lupa é necessária: decidiu-se que o crime só existe (atenção, “só existe”) com o exaurimento da discussão na esfera administrativa. A consequência inarredável é que, doravante, está vedada (repisa-se: vedada!) a possibilidade de todos os agentes públicos responsáveis pela repressão de delitos dessa natureza efetuarem as prisões em “flagrante” dos “contrabandistas”. Podem apreender as mercadorias, sem dúvidas. Mas os criminosos jamais poderão ser presos em flagrante. E a razão é mais que óbvia como decorrente do descalabro da interpretação que se deu à consumação do crime: não pode haver flagrante se o crime só existe algum (às vezes longo) tempo depois, “lá no final da discussão na seara administrativa”, e com a “constituição do crédito tributário” (quando, na imensa maioria dos casos, não há como constituir o crédito tributário). A propósito, há se dizer que, salvo nas raríssimas situações em que os bens objeto do “descaminho” não forem localizadas, terem sido consumidas ou revendidas, haverá o procedimento administrativo sem constituição de qualquer crédito tributário, decretando-se unicamente a perda das mercadorias sem tributação alguma incidente (art. 71, III, Decreto nº 6.759/2009).
E a incoerência é maior quando se verifica que todas as hipóteses que permitiriam a apreensão das mercadorias com prisões em flagrante não traziam em si as excepcionais hipóteses de constituição de crédito tributário (pois as mercadorias eram localizadas, não teriam sido consumidas, nem revendidas). Ou seja, nos casos em que, tecnicamente, deveria haver a prisão em flagrante, impossível a constituição do crédito tributário.
Parece inacreditável, não? Mas é isso mesmo! Literalmente “criam-se” teses que, por ausência de coerência dogmática, implicam em tamanho absurdo.
É preciso advertir: qualquer agente público que, por conta desse novo entendimento, fizer uma “prisão em flagrante” de descaminhadores poderá ser responsabilizado criminalmente por abuso de autoridade.
Sim, é exatamente isso, pois está expressamente previsto no art. 3º, I, da Lei 4.898/65 que “constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção”, bem como, mais especificamente (art. 4º, ´a´, Lei 4.898/65) que “constitui também abuso de autoridade ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.
É dizer: o criminoso (passível de prisão em flagrante, inclusive) será o agente público que efetua a prisão de quem está cometendo o crime. Sem falar que, mesmo que não seja preso em flagrante, o agente poderá ainda perder seu cargo (art. 6º, § 1º, ´e´ e ´f´, da Lei 4.898/65).

Esse problema já havia sido detectado num julgamento do STF em que, paradoxalmente, e após a edição da Súmula Vinculante n. 24, permitiu-se o prosseguimento de uma ação penal por sonegação de tributos em que ainda não havia sido exaurida a esfera administrativa (a comprovar que até hoje, efetivamente, em minha modesta avaliação, todos os tribunais, mas especificamente o STF, ainda não compreenderam a real extensão do conteúdo da súmula invocada). Especificamente no julgamento do HC nº 90.795-PE (em 4.12.2007, publicado no DJ em 29.2.2008)5 assentou-se na ementa:


AÇÃO PENAL - JUSTA CAUSA. O trancamento da ação penal por falta de justa causa pressupõe que as práticas descritas na denúncia não consbustanciam crime.

DENÚNCIA - INÉPCIA. Descabe cogitar de inépcia da denúncia quando narrados fatos a viabilizar o exercício do direito de defesa.

CRIME TRIBUTÁRIO - PROCESSO ADMINISTATIVO - DISPENSA. Uma vez versada situação concreta em que, mediante o exercício do poder de polícia, deu-se a apreensão de mercadoria acompanhada de notas fiscais e guias falsas, possível é a propositura da ação penal, independentemente da responsabilidade administrativo fiscal.

CRIME - RESPONSABILIDADE. No julgamento de habeas corpus, não se pode assentar a improcedência da imputação, havendo de se aguardar a instrução do processo-crime e a prolação da sentença.


Em felizes momentos de seu voto, o saudoso Ministro Menezes Direito ponderou que “a questão posta, no que concerne ao procedimento administrativo para a constituição de crédito tributário, pelo que pude deduzir, significa o eixo da sustentação feita nesta impetração, e parece-me superada pela jurisprudência. Porque, tal como posto no parecer da Procuradoria-Geral da República, aguardar-se o exaurimento da instância administrativa, impedindo a ação do Ministério Público para a apuração do crime tributário, significaria, pelo menos na minha compreensão, dar um bill de idenidade, condicionado a procedimento criminal diante do procedimento administrativo a ser instaurado pelo Ministério Público”, e, mais adiante, arrematou com absoluta precisão que “se tolhêssemos a ação do Ministério Público, diante das circunstâncias postas nos autos, condicionaríamos a iniciativa do procedimento administrativo ao Código Penal. Em uma palavra: não haveria mais flagrante quando se constatasse negligência relativamente ao dispositivo legal permitido” (grifos nossos).

É isso: acabou (também) o flagrante em delitos de “contrabando”.
Portanto, duas advertências:
a) aos criminosos, aproveitem !;
b) aos agentes públicos, não prendam: os presos, inclusive em flagrante, poderão ser vocês !

Conclusões.

É preciso, e urgentemente, atentar-se para o incremento à impunidade por conta de certas leis e decisões judiciais. Um bom instrumento é se evitar um descompasso sistêmico com a invocação (muitas vezes “a esmo”) de paradigmas garantistas (como frase pronta, quiçá por leituras de mal-traduzidos fragmentos dos originais ou então de leituras de garantismo que certa vez denominei de hiperbólico monocular, e não integral) ou da fragmentariedade do Direito Penal (pressuposto absolutamente válido, aliás, quando racional e pontualmente aplicado).

Ainda temos a esperança de que as incoerências dogmáticas e jurídicas serão corrigidas a tempo. Caso contrário é melhor nem pensar nas consequências que serão trazidas em detrimento do verdadeiro e integralmente visto Estado Social e Democrático de Direito.

1 Procurador Regional da República na 4ª Região, Mestre em Instituições de Direito e do Estado pela PUCRS, Diretor de Ensino do MPF na Escola Superior do Ministério Público da União. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal. Lattes.cnpq.br/5240252425788419.

2Atente-se para as considerações do Presidente do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial Marcílio Marques Moreira, em artigo intitulado “Existe uma ética de mercado ?”: “O lucro da empresa não pode, portanto, ser gerado por sonegação ou falcatruas, nem à custa dos concorrentes. A concorrência desleal, além do dano ao erário público, desfigura o mais eficaz instrumento de mercado – a competição empresarial” (Revista do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial nº 10, ano 5, agosto de 2008).

3 A propósito, vide nossas considerações mais detalhadas e técnicas em FISCHER, Douglas. A impunidade: sonegação fiscal e exaurimento da esfera administrativa – Ainda sobre os problemas derivados dos precedentes do STF no HC nº 81.611-SP e seu confronto com o que decidido no HC nº 90.795-PE”. Revista Direito e Democracia. Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, vol. 9, n. 1, jan./jun.2008, p. 184.

4 No AgRg-REsp 1114109/SP, entendeu-se que “a Lei nº 11.457⁄2007 considerou também como dívida ativa da União os débitos decorrentes das contribuições previdenciárias, dando-lhes tratamento similar aos débitos tributários. Tal a situação não há porque distinguir para efeitos penais os crimes de descaminho e de” apropriação indébita de contribuição previdenciária” – julgado em 06/09/2011, publicado no DJ em 16/09/2011.

5 Para mais detalhes, vide, novamente, a íntegra do texto referido na nota de rodapé n. 3.

2 comentários:

  1. Parabéns pela postagem. Confesso que na mesma semana em que saiu esta Portaria do Ministério da Fazendo tomei conhecimento da mesma e já imaginei a tragédia da impunidade que se avizinhava.

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  2. Bela postagem Doutora, que pena não ter encontrado sua página antes... Vou incluí-la na minha página pessoal, caso queira trocar informações:

    www.criminalistanato.blogspot.com.br

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