Vale a pena a leitura. É o retrato triste, mas fiel, de como os nossos tribunais andam decidindo.
A
DESORDEM (AINDA MAIOR) DO CAOS:
ACABOU
A POSSIBILIDADE DE
PRISÃO
EM FLAGRANTE DE “CONTRABANDISTAS”
Douglas
Fischer 1
Contextualização.
O
direito penal no Brasil, infelizmente, anda com alguma desordem.
Reiteradamente
tenho dito, com muito pesar, que, no país atual, é um grande
negócio “sonegar” (de forma ampla) tributos (e das mais variadas
formas). Contudo, a desordem aumentou: algumas
decisões dos tribunais – capitaneada
pelo
Superior Tribunal de Justiça – premiam algumas práticas
criminosas. Por conta de alguns jugados recentes (abaixo referidos),
não mais é possível a prisão em flagrante de “contrabandistas”.
E tudo é fruto, venia
concessa, da
ausência de compreensão do Direito Penal (no caso, tributário), e,
especialmente, com fundamento na proteção de supostos direitos dos
autores de condutas criminosas.
A
concentração no presente texto está quanto ao delito de
descaminho,
popularmente
também chamado de “contrabando”, mas que deste difere por
questões mais técnico-jurídicas: enquanto o descaminho se
caracteriza (sobretudo) pela introdução de mercadorias no Brasil
sem o pagamento dos impostos devidos (além
de atingir a arrecadação, prejudica – e muito – o direito
concorrencial2),
o contrabando é delito específico em que há proibição de
importação de determinados bens, mesmo que se queira pagar aquela
tributação.
Nem
entrarei na presente abordagem no entendimento dos tribunais de
que, atualmente (por
força da Portaria do Ministério da Fazenda nº 75, de 22 de março
de 2012),
seria “insignificante penalmente” (ou seja, não
é crime algum)
a prática de “contrabando” de até R$20.000,00 (exatamente
isso, pode-se trazer aproximadamente mercadorias em que deveriam ser
pagos tributos de até
vinte
mil reais),
porque o Estado não faria a “cobrança judicial” destes valores
(embora utilize alguns meios administrativos para reaver a quantia
inferior àquele patamar, como ocorre com a realização de inscrição
do devedor no Cadastro Informativo de créditos não quitados do
setor público federal - Cadin).
Por
isso, a “desordem (ainda maior) do caos”. Vejamos, então, a que
ponto chegou a jurisdição em nosso país, com o máximo respeito a
quem pensa em sentido contrário. Que fique bastante claro: a
discussão é meramente dialética, malgrado sejam lançados
argumentos até contundentes em determinados momentos. O ataque
argumentativo é ao conteúdo das decisões, jamais aos seus
prolatores.
A
origem do problema.
Não nego a repetição do tema, mas é fundamental insistir,
sobretudo quando se está diante de erro dogmático ao tratar da
delinquência econômica. Com efeito, em decorrência de
um dos maiores equívocos de compreensão de como realmente
se
consumam os delitos tributários (a sonegação
fiscal, no
caso prevista no
art. 1º, Lei 8.137/90), no julgamento do HC nº 81.611-SP 3,
o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou
(e
os tribunais passaram simplesmente a repetir)
que seria necessário o exaurimento da esfera administrativa para a
existência
de
crime daquela natureza (piores são os argumentos que chamam esse
requisito de condição
objetiva de punibilidade).
Em
palavras mais objetivas, significa que o crime não
existe com
a ação
ou a omissão do
criminoso (ou seja, com o ato
de fazer a sonegação
– de
acordo com a
denominada Teoria
da Atividade, prevista
no art. 4º do Código Penal Brasileiro – literalmente “rasgada”
pelos
atos
decisionistas),
mas sim quando há o exaurimento de todas (e longas) discussões na
seara administrativa. Importante repisar: o crime só existe
com
o final da discussão administrativa. Pior: se não houver a apuração
pelo fisco de crédito
tributário (algo
absolutamente diferente do elemento objetivo do tipo da sonegação
tributo)
no
prazo de 5 anos inviável
também
a responsabilização penal,
que tem prazo de 12 anos, segundo as regras da legislação penal
vigente.
A
situação é mais ou menos como se o STF passasse a exigir
necessariamente a certidão de óbito lavrada por determinado
cartório para que alguém seja punido pelo crime de homicídio. Sem
ela (mesmo diante do corpo do morto,
com
atestado do óbito),
inviável seria a persecução penal. Lá, a tragédia significa
sangria dos cofres públicos.
Mas
há sempre como piorar a desordem: houve evolução
(na verdade, “involução”)
dos
“precedentes”. E quando se fala de um tema sem muita coerência
jurídica, as consequências normalmente são catastróficas (no
caso, para o interesse coletivo). Editou-se uma Súmula Vinculante
para se dizer que “Não
se tipifica
crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º,
incisos
I a IV,
da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Poderia
o leitor perguntar: mas e o inciso V do art. 1º da Lei n. 8.137/90
não foi incluído? A resposta é negativa. As razões? Um mistério,
mas que pode ser desvelado se lidos com um pouco (não precisa muito)
de cuidado alguns dos votos nos primeiros precedentes que geraram
tamanho descalabro jurídico com a retromencionada súmula
vinculante. Ainda tento encontrar um argumento coerente e jurídico
para que não se tenha incluído na referida redação - para quem a
aceita, é claro – a hipótese do inciso V do art. 1º da Lei nº
8.137/90. Quiçá, e assim nos pareceu noutra análise por conta do
que decidido no HC n º 90.795-PE pelo STF, continua-se a
compreender que o crime tributário está na conduta-meio
(e
é hialino que a hipótese do inciso V é mera infração
administrativa) ou porque - ainda – confunde-se crime tributário
com mero
não
recolhimento de tributos. O surrealismo de Salvador Dali, certamente,
iria se ofender com tamanha imaginação distorcida.
Mas,
em síntese, é o que se decidiu: vale o “argumento da autoridade”,
dispensa-se a “autoridade do argumento”.
A
“evolução” do pensamento.
Não bastasse o Superior Tribunal de Justiça (STJ) dizer que o
exaurimento da esfera administrativa deveria ocorrer também para
aqueles crimes de sonegação de natureza
formal
(art. 2º, Lei 8.137/90 e art. 168-A, § 1º, Código Penal – a
apropriação
indébita previdenciária4),
a Corte valeu-se de um “precedente” (na verdade, de uma ementa)
em que não se decidiu absolutamente nada nesse sentido. O E. STJ
referiu-se ao (suposto) precedente tomado no julgamento pelo STF do
Agravo Regimental no Inquérito n. 2.537. Na verdade, olvidou (e
assim continua, porque os precedentes
só
citam
parte do
que foi acordado) que o STF julgou embargos de declaração ao caso
acima e afirmou, peremptoriamente, que os delitos formais
dispensariam discussões na seara administrativa. Se alguém tem
alguma dúvida, atente para o que disse expressamente o Ministro
Cezar Peluso: “O
Ministério Público, parece-me, pretende é dissipar a preocupação
de que, deste julgado, se tire a tese de que o crime, no caso de
desconto, pelo empregador, de verba devida à previdência social,
dependa de prévio procedimento administrativo para caracterizar-se
como tal. No debate, entendi não ser o caso, porque, quando o
empregador, ele mesmo, desconta, sabe o valor que descontou e tem que
repassar. Portanto, não há necessidade nenhuma de instaurar-se
prévio procedimento administrativo para saber o que ele devia ter
recolhido. É ele mesmo que toma a iniciativa, logo sabe o valor que
desconta e deveria recolher. E o Ministério Público está
preocupado que, deste julgamento, se extraia a tese de que, ainda
nesse caso, quando o empregador desconte e não recolha, seria
necessário procedimento administrativo prévio para saber qual é o
valor para efeito de caracterização do tributo. […] É só para
fazer constar esse pronunciamento, deixar claro. Eu também rejeito
os embargos. O Tribunal deixa claro que não concorda com a tese de
que é necessário breve procedimento administrativo para
caracterizar o tributo.”
Mas
o nó górdio não está aí. O cerne de nossa discussão aqui é
muito mais grave.
Alguns
juristas começaram a defender que também no delito de descaminho (o
popular
“contrabando”, insiste-se) seria necessário o exaurimento da
esfera administrativa, com a “constituição do crédito
tributário”. As repetições das teses (algumas “à
moda Goebbels”)
foram se infiltrando nos tribunais, notadamente no STJ. A
insistência (sem discussão dogmática alguma de natureza
minimamente profunda sobre o crime em si) gerou “precedentes”
(quer dizer: ementas, hoje muitas vezes mais valiosas que os próprios
argumentos em si de uma discussão jurídica). Confiramos alguns (não
para as conclusões,
mas
para as teses
explicitadas)
para espancarmos quaisquer dúvidas sobre o que aqui estamos falando:
RECURSO
ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. CRIME MATERIAL.
NATUREZA TRIBUTÁRIA. NECESSIDADE DE CONSTITUIÇÃO DEFINITIVA DO
CRÉDITO TRIBUTÁRIO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO
PROVIDO.
1.
De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o
raciocínio adotado pelo Supremo Tribunal Federal relativamente aos
crimes previstos no art. 1º da Lei n.º 8.137/90, consagrando a
necessidade de prévia constituição do crédito tributário para a
instauração da ação penal, deve ser aplicado, também, para a
tipificação do crime de descaminho. Precedentes.
2.
Embora o crime de descaminho encontre-se, topograficamente, na parte
destinada pelo legislador penal aos crimes praticados contra a
Administração Pública, predomina o entendimento no sentido de que
o bem jurídico imediato que a norma inserta no art. 334 do Código
Penal procura proteger é o erário público, diretamente atingido
pela evasão de renda resultante de operações clandestinas ou
fraudulentas.
3.
O descaminho caracteriza-se como crime material, tendo em vista que o
próprio dispositivo penal exige a ilusão, no todo ou em parte, do
pagamento do imposto devido. Assim, não ocorrendo a supressão no
todo ou em parte do tributo devido pela entrada ou saída da
mercadoria pelas fronteiras nacionais, fica descaracterizado o
delito.
4.
Na espécie, confirmou-se a ausência de constituição definitiva do
crédito tributário, uma vez que ainda não foram apreciados os
recursos administrativos apresentados pela defesa dos recorrentes.
Dessa forma, não é possível a instauração de inquérito policial
ou a tramitação de ação penal enquanto não realizada a
mencionada condição objetiva de punibilidade.
5.
Recurso ordinário que se dá provimento a fim de extinguir a Ação
Penal n.º 5001641-71.2010.404.7005, da Segunda Vara Federal da
Subseção Judiciária de Cascavel, Seção Judiciária do Paraná.
(RHC
nº 31.368-PR, STJ, 5ª Turma, unânime, julgado em 8.5.2012,
publicado em no DJ em 14.6.2012)
HABEAS
CORPUS.
DESCAMINHO (ARTIGO 334 DO CÓDIGO PENAL). NECESSIDADE DE EXAURIMENTO
DA ESFERA ADMINISTRATIVA PARA O INÍCIO DA PERSECUÇÃO PENAL.
AUSÊNCIA DE DOCUMENTAÇÃO COMPROBATÓRIA ACERCA DA INSTAURAÇÃO E
CONCLUSÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO FISCAL ANTES DO
OFERECIMENTO DE DENÚNCIA CONTRA O PACIENTE E DEMAIS CORRÉUS.
NECESSIDADE DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO
EVIDENCIADO. ORDEM DENEGADA.
1.
Tal como nos crimes contra a ordem tributária, o início da
persecução penal no delito de descaminho pressupõe o esgotamento
da via administrativa, com a constituição definitiva do crédito
tributário. Doutrina. Precedentes.
2.
Não há na documentação que instrui o mandamus, qualquer
notícia acerca da existência ou mesmo da conclusão de procedimento
administrativo para apurar a suposta ilusão do pagamento de tributos
incidentes sobre operações de importação por parte do paciente,
circunstância que impede o trancamento do feito por falta de
condição objetiva de procedibilidade. [...]
4.
Ordem denegada. (Habeas Corpus nº 201.164 – PR, STJ, 5ª
Turma, unânime, julgado em 8.11.2011, publicado no DJ em 1º.12.2011)
Descaminho
(caso). Habeas corpus
(cabimento). Matéria de prova (distinção). Esfera administrativa
(Lei nº 9.430/96). Processo administrativo-fiscal (pendência). Ação
penal (extinção).
1.
Determina a norma (constitucional e infraconstitucional) que se
conceda habeas corpus sempre que alguém esteja sofrendo ou se ache
ameaçado de sofrer violência ou coação; trata-se de dar proteção
à liberdade de ir, ficar e vir, liberdade induvidosamente possível
em todo o seu alcance. Assim, não procedem censuras a que nele se
faça exame de provas. Precedentes do STJ.
2.
A propósito da natureza e do conteúdo da norma inscrita no art. 83
da Lei nº 9.430/96, há de se entender que a condição ali
existente é condição objetiva de punibilidade, e tal entendimento
também se aplica ao crime de descaminho (Cód. Penal, art. 334).
3.
Em hipótese que tal, o descaminho se identifica com o crime contra a
ordem tributária. Precedentes do STJ: HCs 48.805, de 2007, e
109.205, de 2008.
4.
Na pendência de processo administrativo no qual se discute a
exigibilidade do débito fiscal, não há falar em procedimento
penal.
5.
Recurso ordinário provido para se extinguir, relativamente ao crime
de descaminho, a ação penal. (Recurso
em Habeas Corpus n. 25.228/RS, STJ, 6ª Turma, unânime, julgado em
27.10.2009, publicado no DJ em 8.2.2010)
PROCESSO
PENAL. HABEAS
CORPUS.
CRIMES DE FALSO, DESCAMINHO E QUADRILHA. 1. INÉPCIA FORMAL. FALTA DE
INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. OCORRÊNCIA.
EXTENSÃO AOS CORRÉUS. 2. DESCAMINHO. PENDÊNCIA DE RECURSO
ADMINISTRATIVO. UBI
EADEM RATIO, UBI IDEM IUS.
TRANCAMENTO. NECESSIDADE.
1.
Cumpre ao acusador individualizar o comportamento típico, sob pena
de enveredar pelos sombrios caminhos da responsabilidade penal
objetiva, fazendo-se tábula rasa da garantia constitucional da ampla
defesa.
2.
Não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de
maneira distinta daquela dispensada aos crimes tributários em geral.
Com a anulação do processo penal ab
initio,
verifica-se, desta forma, que o pagamento do tributo se insere
anteriormente ao recebimento de eventual nova incoativa. Assim, é de
se determinar o trancamento da ação penal no tocante ao descaminho.
[...](Habeas
Corpus nº 67.415-ES, STJ, 6ª Turma,
unânime, julgado em 15.09.2009, publicado no DJ em 28.09.2009)
Diz-se
que haveria similitude
dos
delitos quando, é cediço, e com todas
as venias,
tecnicamente não há nenhuma similitude. Aliás, temos que
concordar: há! Todos são delitos contra (total ou parcialmente) o
interesse arrecadatório do Estado. E só!
Daí
decorre um problema juridicamente insuperável: o STJ disse que a
existência do crime “pressupõe
o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva
do crédito tributário”. Um
fato indubitável: salvo situações bem definidas e excepcionais
(mercadoria não localizada, consumida ou revendida), não há
constituição de crédito tributário em delitos de descaminho.
Aliás, o art.1º , §4o,
do Decreto-lei n. 37/66 dispõe que, em regra, o Imposto de
Importação não incide sobre mercadoria estrangeira que tenha sido
objeto de pena de perdimento, destino quase certo de praticamente
todos os bens apreendidos nas áreas de fronteira.
Quid Juris?
As
consequências desses inadvertidos precedentes não poderiam ser mais
nefastas para o interesse coletivo e também para os agentes estatais
responsáveis pela repressão desse tipo de criminalidade (quem
conhece como ocorrem e em que intensidade estes tipos de crimes
especialmente
nas
regiões de fronteira talvez começaria a repensar as consequências
de suas decisões).
Uma
lupa é necessária: decidiu-se que o
crime
só existe (atenção,
“só existe”) com o exaurimento da discussão na esfera
administrativa. A consequência inarredável é que, doravante, está
vedada
(repisa-se:
vedada!) a possibilidade de todos os agentes públicos responsáveis
pela repressão de delitos dessa natureza efetuarem as prisões em
“flagrante” dos “contrabandistas”. Podem apreender as
mercadorias, sem dúvidas. Mas os criminosos jamais poderão ser
presos
em flagrante. E
a razão é mais que óbvia como decorrente do descalabro da
interpretação que se deu à consumação
do crime:
não pode haver flagrante
se
o crime só existe algum
(às vezes longo) tempo depois, “lá
no final da discussão na seara administrativa”, e com a
“constituição do crédito tributário” (quando, na imensa
maioria dos casos, não
há como
constituir o crédito tributário). A propósito, há se dizer que,
salvo
nas raríssimas situações em que os bens objeto do “descaminho”
não forem localizadas, terem sido consumidas ou revendidas,
haverá o procedimento administrativo sem
constituição de qualquer crédito tributário, decretando-se
unicamente
a
perda das mercadorias sem tributação alguma incidente (art. 71,
III, Decreto nº 6.759/2009).
E
a incoerência é maior quando se verifica que todas as hipóteses
que permitiriam a apreensão das mercadorias com prisões em
flagrante não traziam em si as excepcionais hipóteses de
constituição
de crédito tributário (pois
as mercadorias eram localizadas, não teriam sido consumidas, nem
revendidas). Ou seja, nos casos em que, tecnicamente, deveria haver a
prisão em flagrante, impossível a constituição do crédito
tributário.
Parece
inacreditável, não? Mas é isso mesmo! Literalmente “criam-se”
teses que, por ausência de coerência dogmática, implicam em
tamanho absurdo.
É
preciso advertir: qualquer agente público que, por
conta desse novo entendimento, fizer
uma “prisão em flagrante” de descaminhadores poderá ser
responsabilizado criminalmente por abuso
de autoridade.
Sim,
é exatamente isso, pois está
expressamente previsto no art. 3º, I, da Lei 4.898/65 que “constitui
abuso de autoridade qualquer atentado: a)
à liberdade de locomoção”, bem
como, mais especificamente (art. 4º, ´a´, Lei 4.898/65) que
“constitui
também abuso de autoridade
ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as
formalidades legais ou com abuso de poder”.
É
dizer: o criminoso (passível de prisão em flagrante, inclusive)
será
o agente público que efetua a prisão de quem está
cometendo o
crime. Sem falar que, mesmo que não seja preso em flagrante, o
agente poderá ainda perder seu cargo (art. 6º, § 1º, ´e´ e
´f´, da Lei 4.898/65).
Esse
problema já havia sido detectado num julgamento do STF em que,
paradoxalmente, e após a edição da Súmula Vinculante n. 24,
permitiu-se o prosseguimento de uma ação penal por sonegação de
tributos em que ainda não havia sido exaurida a esfera
administrativa (a comprovar que até hoje, efetivamente, em minha
modesta avaliação, todos os tribunais, mas especificamente o STF,
ainda não compreenderam a real
extensão do
conteúdo da súmula invocada). Especificamente no julgamento do HC
nº 90.795-PE (em 4.12.2007, publicado no DJ em 29.2.2008)5
assentou-se na ementa:
AÇÃO
PENAL - JUSTA CAUSA. O trancamento da ação penal por falta de justa
causa pressupõe que as práticas descritas na denúncia não
consbustanciam crime.
DENÚNCIA
- INÉPCIA. Descabe cogitar de inépcia da denúncia quando narrados
fatos a viabilizar o exercício do direito de defesa.
CRIME
TRIBUTÁRIO -
PROCESSO ADMINISTATIVO - DISPENSA. Uma
vez versada situação concreta em que, mediante o exercício do
poder de polícia, deu-se a apreensão de mercadoria acompanhada de
notas fiscais e guias falsas, possível é a propositura da ação
penal, independentemente da responsabilidade administrativo fiscal.
CRIME
- RESPONSABILIDADE. No julgamento de habeas
corpus,
não se pode assentar a improcedência da imputação, havendo de se
aguardar a instrução do processo-crime e a prolação da sentença.
Em
felizes momentos de seu voto, o saudoso Ministro Menezes Direito
ponderou que “a
questão posta, no que concerne ao procedimento administrativo para a
constituição de crédito tributário, pelo que pude deduzir,
significa o eixo da sustentação feita nesta impetração, e
parece-me superada pela jurisprudência. Porque, tal como posto no
parecer da Procuradoria-Geral da República, aguardar-se o
exaurimento da instância administrativa, impedindo a ação do
Ministério Público para a apuração do crime tributário,
significaria, pelo menos na minha compreensão, dar um bill
de
idenidade, condicionado a procedimento criminal diante do
procedimento administrativo a ser instaurado pelo Ministério
Público”, e,
mais adiante, arrematou com absoluta precisão que “se
tolhêssemos a ação do Ministério Público, diante das
circunstâncias postas nos autos, condicionaríamos a iniciativa do
procedimento administrativo ao Código Penal. Em
uma palavra: não haveria mais flagrante quando se constatasse
negligência relativamente ao dispositivo legal permitido”
(grifos nossos).
É
isso: acabou (também) o flagrante em delitos de “contrabando”.
Portanto,
duas advertências:
a)
aos criminosos, aproveitem !;
b)
aos agentes públicos, não
prendam: os presos, inclusive em flagrante, poderão ser vocês !
Conclusões.
É
preciso, e urgentemente, atentar-se para o incremento à impunidade
por conta de certas
leis
e decisões
judiciais.
Um bom instrumento é se evitar um descompasso sistêmico com a
invocação (muitas vezes “a esmo”) de paradigmas
garantistas (como
frase pronta, quiçá por leituras de mal-traduzidos fragmentos dos
originais ou então de leituras de garantismo que certa vez denominei
de hiperbólico monocular, e não integral)
ou da fragmentariedade
do Direito Penal (pressuposto
absolutamente válido, aliás, quando racional
e pontualmente aplicado).
Ainda
temos a esperança de que as incoerências dogmáticas e jurídicas
serão corrigidas a tempo. Caso contrário é melhor nem pensar nas
consequências que serão trazidas em detrimento do verdadeiro
e integralmente visto
Estado Social e Democrático de Direito.
1
Procurador Regional da República na 4ª Região, Mestre em
Instituições de Direito e do Estado pela PUCRS, Diretor de Ensino
do MPF na Escola Superior do Ministério Público da União.
Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.
Lattes.cnpq.br/5240252425788419.
2Atente-se para as considerações do Presidente do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial Marcílio Marques Moreira, em artigo intitulado “Existe uma ética de mercado ?”: “O lucro da empresa não pode, portanto, ser gerado por sonegação ou falcatruas, nem à custa dos concorrentes. A concorrência desleal, além do dano ao erário público, desfigura o mais eficaz instrumento de mercado – a competição empresarial” (Revista do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial nº 10, ano 5, agosto de 2008).
3 A propósito, vide nossas considerações mais detalhadas e técnicas em FISCHER, Douglas. A impunidade: sonegação fiscal e exaurimento da esfera administrativa – Ainda sobre os problemas derivados dos precedentes do STF no HC nº 81.611-SP e seu confronto com o que decidido no HC nº 90.795-PE”. Revista Direito e Democracia. Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, vol. 9, n. 1, jan./jun.2008, p. 184.
4 No AgRg-REsp 1114109/SP, entendeu-se que “a Lei nº 11.457⁄2007 considerou também como dívida ativa da União os débitos decorrentes das contribuições previdenciárias, dando-lhes tratamento similar aos débitos tributários. Tal a situação não há porque distinguir para efeitos penais os crimes de descaminho e de” apropriação indébita de contribuição previdenciária” – julgado em 06/09/2011, publicado no DJ em 16/09/2011.
5 Para mais detalhes, vide, novamente, a íntegra do texto referido na nota de rodapé n. 3.
Parabéns pela postagem. Confesso que na mesma semana em que saiu esta Portaria do Ministério da Fazendo tomei conhecimento da mesma e já imaginei a tragédia da impunidade que se avizinhava.
ResponderExcluirBela postagem Doutora, que pena não ter encontrado sua página antes... Vou incluí-la na minha página pessoal, caso queira trocar informações:
ResponderExcluirwww.criminalistanato.blogspot.com.br